terça-feira, 15 de junho de 2010

A questão da terra e a Igreja Católica no Brasil

Pe. José Oscar Beozzo *
Adital -
1. Para as centenas de povos indígenas que ocupavam a Pindorama, a terra das Palmeiras, seja a terra, sejam as águas vindas da terra por fontes, mares e rios ou caídas do céu por chuvas e orvalho, sejam as matas ou sementes, plantas e tubérculos, sejam os animais e pássaros estavam carregados de um sentido sagrado: escondiam e revelavam o mistério da divindade. A terra era sagrada, fonte de vida e alimentação, lugar de comunhão com as forças da natureza e por último com o próprio criador, pai e mãe de todas as coisas e também dos humanos. Abrigava também os espíritos maus que traziam doenças e a morte. Se não tinham senso de propriedade privada, pela forma familiar e comunitária de vida e trabalho, demarcavam e defendiam e seu território de caça, pesca, coleta ou plantio, como garantia de sobrevivência da tribo.

2. Lavrar e plantar uma cruz para a primeira missa de Frei Henrique de Coimbra, diante dos olhos curiosos e estupefatos dos nativos frente aos machados de ferro que abatiam tão facilmente as árvores e as enxós que desbastavam celeremente os troncos; tomar posse para El-Rei da terra recém descoberta e batizá-la com o nome de Terra da Santa Cruz pareceram os gestos mais naturais do mundo para Cabral e seus homens que haviam partido do Tejo para "dilatar a fé e o império".

3. A rápida mudança de nome de Terra da Santa Cruz para Terra Brasilis ou simplesmente Brasil mostrou que a lógica do império mercantil se sobrepunha à da fé e da missão, como norteadora do projeto colonial. A terra ganhou o nome da madeira cor de brasa, o pau-brasil, inserido agora como corante no circuito dos tecidos finos tingidos de novos tons de vermelho, substituindo no mercado a tradicional púrpura do oriente.

4. A decisão de ocupar politicamente a terra com as capitanias hereditárias e economicamente com lavouras de cana de açúcar instaurou o processo de des-ocupar a terra dos seus habitantes naturais e reintroduzi-los na mesma terra não mais como donos, mas como trabalhadores cativos: CATIVEIRO DA TERRA e CATIVEIRO DAS PESSOAS passaram a andar de mãos dadas acompanhando o CATIVEIRO DA PRODUÇÃO, voltada não mais para a satisfação das necessidades de quem produzia, mas para as exigências do MERCADO INTERNACIONAL.

5. Monopólio da terra, traduzido na institucionalização e legitimação da GRANDE PROPRIEDADE, mesmo como latifúndio improdutivo; produção sob o signo da MONOCULTURA, seja da cana, fumo, algodão, café, cacau ou atualmente soja; trabalho, sob o REGIME DE ESCRAVIDÃO e produção voltada não para o mercado interno e as necessidades do povo, mas para o MERCADO INTERNACIONAL, constituíram os quatro pilares da organização econômica, mas também da formação social brasileira.

6. O Pe. Antônio Vieira, provincial dos jesuítas, responsável pelas missões do Maranhão e Grão Pará, uma vez expulso em 1661, com todos os demais missionários jesuítas, por se oporem à escravidão dos indígenas naquela área, exprimiu de maneira pungente a contradição de um projeto missionário patrocinado pelo projeto colonial. Ao tornarem os indígenas vassalos de Cristo pelo batismo, os faziam vassalos do rei, fazendo-os perder suas terras, a própria pátria, soberania e liberdade.

7. Penitencia-se Vieira dizendo: "Não posso, porém, negar que todos nesta parte, e eu em primeiro lugar somos muito culpados. E por quê? Porque devendo defender os gentios que trazemos a Cristo, como Cristo defendeu os Magos, nós, acomodando-nos à fraqueza do nosso poder, e à força do alheio, cedemos da sua justiça, e faltamos à sua defesa. Como defendeu Cristo os Magos? Defendeu-os de tal maneira que não consentiu que perdessem a pátria, nem a soberania, nem a liberdade: e nós não só consentimos que os pobres gentios que convertemos, percam tudo isto, senão que os persuadimos a que o percam, e o capitulamos com eles, só para ver se se pode contentar a tirania dos cristãos; mas nada basta" (Sermão da Epifania, 06 de janeiro de 1662).

8. Prossegue Vieira: "Cristo não consentiu que os Magos perdessem a pátria, porque reversi sunt in regionem suam (voltaram para a sua região): e nós não só consentimos que percam a sua pátria aqueles gentios, mas somos os que à força de persuasões e promessas (que se lhes não guardam) os arrancamos das suas terras, trazendo as povoações inteiras a viver ou a morrer junto das nossas. Cristo não consentiu que os Magos perdessem a soberania, porque reis vieram, e leis tornaram: e nós não só consentimos que aqueles gentios percam a soberania natural com que nasceram e vivem isentos de toda a sujeição; mas somos os que sujeitando-os ao jugo espiritual da Igreja, os obrigamos, também, ao temporal da coroa, fazendo-os jurar vassalagem. Finalmente, Cristo não consentiu que os Magos perdessem a liberdade, porque os livrou do poder e tirania de Herodes, e nós não só não lhes defendemos a liberdade, mas pactando com eles e por eles, como seus curadores, que sejam meios cativos, obrigando-se a servir alternadamente a metade do ano. Mas nada disto basta para moderar a cobiça e tirania dos nossos caluniadores, porque dizem que são negros, e hão de ser escravos" (ibidem).

9. No Brasil, a abundância de terras, onde as pessoas poderiam livremente plantar e colher para si, aliada à escassez da mão de obra, obrigou o sistema a montar uma dupla operação: subtrair as terras livres aos seus donos ou possíveis pretendentes, monopolizando-as nas mãos de poucos e estabelecer formas de trabalho compulsório e no limite escravo, para que as pessoas não trabalhassem para si, mas para outrem. Para tanto, foi necessário o intenso tráfico negreiro entre as costas da África e o Brasil. Nas franjas do sistema, subsistiam famílias de agregados que podiam de favor, mas não de direito, plantar nas terras de algum potentado.

10. Por isso ao cativeiro da terra está correlacionado ao cativeiro dos trabalhadores e trabalhadoras e o regime de trabalho escravo perdurou por quase quatro séculos sendo o Brasil o último país das Américas e do Caribe a abolir o regime de trabalho escravo. De novo, nas franjas do sistema, estabeleceram-se os quilombos, aglomerados de escravos fugidos em terras livres, com trabalhadores livres e produção livre, sem receberem, porém, apoio ou legitimação por parte da Igreja que condenava sua rebeldia e a perda que infligiam à propriedade de seus senhores, subtraindo-lhe seus corpos e braços.

11. Nas campanhas pela abolição da escravatura, de maneira muito arguta, Joaquim Nabuco argumentava que libertar os escravos, sem libertar a terra, entregando-lhes um pedaço de chão para cultivarem em liberdade, seria prolongar a escravidão no Brasil, como bem podemos constatar pelas inúmeras formas de trabalho escravo que subsistem pelo país, todas elas vinculadas à permanência do monopólio da terra e do latifúndio. Perpetua-se assim a maldição histórica de os lavradores não possuírem normalmente a terra em que trabalham, convertendo-se em eternos "trabalhadores rurais sem terra".

12. A Lei de Terras de 1850, que criou as condições para um mercado capitalista da terra no país é contemporânea da Lei de Terras dos Estados Unidos aprovada no mesmo ano e que resultou na grande corrida para o oeste americano que incorporou ao país milhões de quilômetros quadrados de terras roubados às populações indígenas ou subtraídos ao México por meio de guerra e tratados arrancados à força. A lei brasileira privilegiou o acesso a terra por meio da compra, supondo meios financeiros da parte do pretendente. Dificilmente seria um trabalhador rural sem terra ou um imigrante pobre, sem capital algum e que só podia sobreviver contando com a força do seu braço. A lei norte-americana legitimou a posse da terra, tanto por meio do capital quanto do trabalho. O trabalhador que lavrasse lote de terra por três anos, sem contestação, podia solicitar o título de propriedade sobre o mesmo. Isto abriu caminho para a entrada no país entre 1850 e a primeira guerra mundial de 40 milhões de imigrantes pobres, que sonhavam com a terra própria.

13. Se a Igreja apoiou com entusiasmo a entrega de terras a imigrantes europeus no sul do país, pouco fez, na época, para defender os indígenas da espoliação de suas terras nas quais os colonos iam sendo instalados, ou para denunciar as expedições de bugreiros que, a pretexto de segurança dos colonos, a cada estação seca, partiam à caça dos indígenas, arrasando e queimando impunemente suas aldeias, aprisionando mulheres e crianças e eliminando os guerreiros.

14. Lamentava a Igreja, por outro lado, as condições dos trabalhadores sem terra, assalariados nas fazendas de café, mas acomodava-se ao sistema, pois dependia da permissão dos fazendeiros e da cessão de suas capelas, para ter acesso pastoral às famílias dos colonos.

15. Nos conflitos de Canudos na Bahia (1896-1897) ou do Caldeirão do Juazeiro no Ceará (1936), que mesclavam a tradicional busca por terra por parte de camponeses que iam sendo expulsos das fazendas tradicionais, onde moravam de favor, com a busca quase messiânica de um mundo novo mais fraterno e comunitário, com a posse mansa e pacífica da terra onde se trabalhava e dos frutos que eram colhidos, sem se pagar renda pela terra cultivada, os conflitos e incompreensões com a Igreja hierárquica abriram caminho para a repressão armada do movimento. Em grande parte, tratava-se de camponeses tangidos para fora das fazendas que se recusavam a virar simplesmente mão de obra assalariada no plantio e colheita do algodão ou no corte da cana, sem um pedaço de chão para plantarem sua roça de subsistência e criarem uma galinha, cabra ou porco que garantissem melhor o sustento dos seus.

16. Na guerra do Contestado (1912-1916), na fronteira entre Paraná e Santa Catarina estava subjacente o conflito de camponeses expulsos de suas terras pelas empresas que construíram a estrada de ferro de São Paulo para o sul do país e cujas terras eram dadas em concessão para projetos de colonização capitalista. Comparavam sua sorte à dos imigrantes que recebiam terras do mesmo governo que os expulsava das terras que cultivavam tradicionalmente para entregá-las sem mais ao consórcio estrangeiro da estrada de ferro. Os camponeses foram tratados do ponto de vista religioso como "fanáticos" e de novo, a Igreja prestou assistência espiritual às tropas que dizimaram os arraiais dos camponeses do monge José Maria.

17. O socorro aos indígenas que iam sendo massacrados na expansão das estradas de ferro no interior de São Paulo ou nas frentes de expansão da borracha no vale amazônico partiu muito mais da mobilização da sociedade civil, da imprensa e da sensibilidade do Marechal Cândido da Silva Rondon, resultando no Serviço de Proteção aos Índios - SPI (1910). O SPI criou ao longo da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, a Brasil-Bolívia, então em construção e em conflito com os índios Kaingang e Coroados, os primeiros postos do SPI, com alguma forma de proteção por parte do Estado às populações indígenas e às suas terras. Infelizmente, um histórico posterior de corrupção e alianças com os que cobiçavam as terras indígenas levou à extinção do órgão e sua substituição pela FUNAI, sem que seus vícios fossem sanados.

18. Os primeiros movimentos pela reforma agrária à raiz da revolução de 1930 não encontraram grande eco nos arraiais eclesiásticos, mais preocupados em quebrar o caráter laicista da república velha, assegurando o ensino religioso facultativo nas escolas públicas, a assistência religiosa às forças armadas, aos estabelecimentos penais e hospitais, o apoio à família contra o divórcio, a inserção do nome de Deus na constituição, ao lado da reivindicação de legislação trabalhista, liberdade sindical, defesa da propriedade. Nos dez pontos da Liga Eleitoral Católica, apresentados como as reivindicações católicas nas eleições para a Constituinte em 1933, não aparecia, porém, qualquer reclamo por reforma agrária.

19. A primeira manifestação pública da Igreja em relação aos problemas da terra, teve origem na Semana Nacional da Ação Católica realizada em Campanha, MG, em 1950 e que resultou na Carta Pastoral de Dom Inocêncio Engelke OFM, em que se expressa claro apoio à reforma agrária, que pelas próprias exigências do movimento social se faria "com nós, sem nós ou contra nós".(1).

20. O passo decisivo na formação de um consenso interno na Igreja, veio por conta da Encíclica Mater et Magistra de João XXIII de maio de 1961. Com a MM a "questão social" que havia sido até então lida desde a Rerum Novarum de Leão XIII (1891) sob o ângulo da questão operária, estende-se também aos problemas da terra e dos trabalhadores rurais.

21. A CNBB foi parceira nas discussões que resultaram na legislação que levou à aprovação da lei do sindicalismo rural, em 1962. Grande parte das dioceses de norte a sul do país se mobilizaram para lograr a formação dos primeiros sindicatos de trabalhadores rurais, em parte por receio da expansão no nordeste das Ligas Camponesas de Francisco Julião.

22. No Brasil, provocou intenso debate e levou a pronunciamento da CNBB em favor da Reforma Agrária, com pronta reação contrária do grupo da TFP e dos bispos a ela ligados, com polêmica pública em torno do livro "Reforma Agrária, questão de consciência".

23. Em 1963, novo pronunciamento da CNBB emprestou apoio público às Reformas de Base do Governo João Goulart, entre as quais se encontrava a Reforma Agrária, a ser implantada em terras a serem desapropriadas, dez quilômetros de cada lado, ao longo das rodovias abertas pelo governo federal ou em torno a outras obras públicas, como açudes e barragens. Um dos pontos nevrálgicos da reforma consistia no pagamento das desapropriações em títulos da dívida agrária e não em dinheiro, o que inviabilizaria a reforma. Este projeto acabou precipitando a queda do Governo Goulart, mostrando o secular poder social, político e econômico dos proprietários de terra e a resistência à mudança mais profunda da formação social brasileira apoiada na grande propriedade da terra e no agronegócio exportador.

24. O Estatuto do Trabalhador Rural (Lei 4214 de 02-03-1963), aprovado durante o Governo de João Goulart regulou as relações de trabalho no campo que até então haviam estado à margem da legislação trabalhista. Foi seguido pelo Estatuto da Terra (Lei 4504 de 30 de novembro de 1964), decretado pelo primeiro governo militar de Castelo Branco (1964-1967). Ambas as leis receberam acolhida favorável por parte da Igreja do Brasil, mas os crescentes conflitos no campo e em torno às terras indígenas, com repressão às lideranças camponesas e indígenas levaram à criação pela CNBB do CIMI (1972) e logo depois da CPT (1975).

25. Os trabalhos da CPT ajudaram a amadurecer a posição da Igreja do Brasil, levando-a à elaboração do documento "A Igreja e Problemas da Terra" aprovado pela 18ª Assembléia da CNBB, em Itaici, a 14 de fevereiro de 1980. Destaca-se o documento por sua reflexão inovadora que distingue "terra de trabalho" e "terra de negócio", vinculando-se pela primeira vez a legitimidade da posse da terra mais ao trabalho do que ao capital. Reconhece o mesmo documento a importância de outras formas de se relacionar com a terra como a das populações indígenas, em sua forma comunitária ou a de posseiros que não reivindicavam a propriedade, mas o direito ao seu uso, não para negócio, mas sim para subsistência.

Nota:

(1) Sempre correu voz de que o rascunho dessa Carta Pastoral de Dom Inocêncio fora preparado pelo Pe. Helder Pessoa Camara, presente na Semana Social de 1950, na qualidade de Assistente Nacional da Ação Católica Brasileira. Em 17 de maio de 2010, Frei Gilberto Gorgulho OP, na época com doze anos de idade e cursando o Seminário Menor de Campanha, MG, deu ao autor versão diferente, calcada em testemunho pessoal. A Carta assinada pelo Bispo diocesano, Dom Inocêncio foi preparada por um de seus professores do Seminário, Pe. Antônio de Oliveira Godinho (1920-1992), posteriormente eleito deputado estadual pela UDN, em São Paulo, SP (1959-1963) e federal, por dois mandatos seguidos (1963-1967; 1967-1971). Cassado pelos militares em 1969, tornou-se, nos seus últimos anos de vida, diretor do Museu de Arte Sacra de São Paulo, SP.

São Paulo, 12 de maio de 2010.


* Coordenador geral do Cesep (Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular). Vigário da Paróquia São Benedito em Lins. Membro e ex-presidente do Cehila (Comissão de Estudos da História da Igreja no Brasil e na América Latina)

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